quarta-feira, 25 de junho de 2014


Os Avatares das Ilhas. Ou a infindável demanda da identidade cabo-verdiana


Para o leitor, que sou e somos, um livro é sempre uma descoberta, às vezes agradável, outras nem tanto. Umas vezes fácil, outras, só possível depois de várias leituras.
Este livro Os Avatares das Ilhas é um romance, como esclarece o seu Preâmbulo। Lê-se para se descobrir, sim, que é um romance sui generis. S ui generis é também uma classificação que tem sido dada à identidade cabo-verdiana, designadamente por antropólogos, nacionais e estrangeiros, e só cito dois de entre muitos - Alberto Sobrero, Lopes Filho. Muito tem sido dito sobre o que é ser cabo-verdiano, a nível dos ensaios que se interrogam sobre este objecto. A nível da produção poética, da nossa escassa produção romancística, a tal ponto que será de acarinhar, lendo, traduzindo, relendo, criticando os livros que a pertinácia, o amor e curiosidade, ou tudo isso junto vai gerando.

Um dos factores que contribui para a característica sui generis acima apontada é que este é um romance de tese, em cuja arquitectura entram elementos estruturantes como a conceptualização, a organização textual, a articulação entre a forma e o fundo, expressão e conteúdo। Um romance cujo conteúdo indica a preocupação de denunciar as inverdades – aquela que está no relatório dum governador colonial, a que está nos mais recentes desenvolvimentos da nossa História por escrever.

Sui generis ainda porque procura representar a realidade da forma como um romance o faz. Ou seja, o romance não descreve factos, que é trabalho de outro tipo de texto. Um romance, esse, interpreta e representa o sentido do real e se o real pode ser descrito em factos, muito mais pode ser interpretado e representado através da construção de sentidos, uma construção sábia que o romance e só ele pode tentar fazer.
Sui generis ainda porque, pela sua natureza, o romance permite entretecer num todo coerente orgânico, elementos que de outro modo seriam dispersos। É assim que, leitor e habitué das epopeias, encontraremos em Os Avatares das Ilhas um Homero e um Eneias, que raros conheciam e agora passam a conhecer nesta saga. Encontraremos em Os Avatares das Ilhas ainda, sugerida, se não erro, a transformação do romance culto que em pura alquimia se modifica na boca do povo. Como é que de tais elementos dispersos se organiza o todo, para se atingir a tal coerência orgânica de que acima se fala? Falemos de arquitectura, texto que combinam tais elementos distintos. Ou seja, há uma arquitectura do texto pela qual se tecem as Mitologias, inventadas, reinventadas e consagradas. Assim o Homero que, de autor histórico, surge aqui em avatar, numa transmigração em que o criador se torna criatura e pode dialogar com um Eneias, ainda como há vinte séculos, criatura imortal por um criador que não o é. Herói, Homero em oitava letra. Heróis mais: Samuel, Lina, Benvinda. O herói é o que se expõe num concurso para o hino nacional? O herói é um cavalheiro que se expõe a uma atroz punição apenas para defender o bom nome da sua dama? Ou a dama é o herói, em luta contra as convenções sociais que diminuem não só a mulher mas também a criatura humana? A dama é este herói que adapta o seu combate a novos valores? O herói? Heróis ou anti-heróis? Terá o leitor a resposta? Haverá respostas para as perguntas que o leitor e vai descobrindo? A demanda será mesmo interminável? Estaremos pernate o romance aberto preconizado no nouveau roman, de que nos falou o "Preâmbulo"?

Como se faz a actualização destes Avatares nestas Ilhas? Ilhas. Sabemos quais são estas ilhas, os seus nomes estão lá, e designadas na sua realidade toponímica, brincam com os conceitos de invenção e reinvenção.
Um leitor é atraído desde cedo pelos aparatos do livro, por um título, por aquilo que já sabe de outros livros, pelas sugestões ao seu próprio mundo que o livro promete. Esse é o ar de família que convive com um aspecto, paradoxal, inquietante até: o livro também tem de ser um desafio.
Este é um livro que desafia o leitor. Em especial, mais que o leitor em demanda da identidade, aquele que não deixou murchar em si uma das qualidades que fez avançar a nossa espécie desde a aurora dos tempos: a curiosidade. Como se faz a actualização destes Avatares nestas Ilhas?Ilhas que têm nome, trazido de fora, nomes que tomaram a forma e sobretudo o fndo que lhe demos, lhe dermos. Por isso, é importante o verbo abundante, os jogos em que o Maravilhoso e o Real dialogam, as sinestesias, o ritmo próprio uma estrutura 3-4-2, que dá o compasso a "Ilhas ammordaçadas" mas também "ubíquas" e de "desvario" – como na utopia que é uma eutopia, a das ruas que sabemos e sonhamos que um dia vão ser o lugar do Belo. Isto , acho, é o principal que pedimos a um livro familiar e curioso como estes Avatares das Ilhas.

MLL

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