sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Tininha e Eça, Meninos da Póvoa

Depois da primeira vez, sempre causa alguma perplexidade – a quem lhe lê o traço breve, quase com a (não) densidade da caricatura – com que Eça de Queirós apresenta de África, ele escritor, no centro de um império que muito crescera apoiado na base imensa que eram as riquezas de África – o ouro, os escravos, depois da malagueta, e antes até da nossa urzela: Pedindo licença para a primeira pessoa: expliquemos que reconhecemos queistoé pôr-se o minorca em bicos-de-pés, a ver se o veem melhor (vêem, já com a nova norma).

É, n’Os Maias, aquele magnífico preto que faz parte do cenário onde está a dar-se a aparição (sic) da protagonista, Madame Gomes, afinal Maria da Maia, ele e ela dissimiles, díspares na cor e quiçá na condição social – a dúvida vem do facto de que tanto o negro como a mulher nesta contemporaneidade não têm direito a voto – , decerto émulos no que representam de exótico, logo perturbante, o magnífico e a deslumbrante, na placidez do Portugal que Eça via.
E o que Eça via, anos depois nesta contemporaneidade que escreve o magnífico preto e a deslumbrante deusa loira, quase juraria, formara-se como sua percepção das coisas, do real, a partir da Póvoa de Varzim.
A Póvoa natal, a da sua meninice, onde vive até á quase adolescência:
É a isto que o leitor que eu sou, chega por associação neste primeiro sábado de Outubro, aberto o Lance onde se destacam as proezas duma poste que é campeã de África. Ela que um dia viveu na Póvoa, durante duas épocas, numa sua idade com certeza ainda bem juvenil.
A Póvoa de Varzim de Eça, olvidada por um Saramago que aí passou mas sem marcas na memória, antes do Nobel e na Viagem pela sua terra. Nem memória nem sua fábula.
A Póvoa de Varzim de Tininha, essa, nem sei se tem qualquer interesse para o leitor interessado nas suas proezas dela.
E se, numa superprodução de science-fiction, passado e futuro se encontrassem e os meninos da Póvoa, ambos prodígios se não então sim no futuro, se os olhos de Zé Maria menino pudessem ver Tininha em afundanços que lhe valem prémios, ela no seu posto-poste, ele no cadeirão da sua secretária, numa qualquer cidade do seu périplo diplomático, traçando linhas para lançar as suas charges em romances de tese, em notas que são ensaios sobre o seu tempo - teria Eça escrito outras coisas de África, de Cabo Verde?
Não mais a brevidade das descrições, a leveza da análise. Decerto ditadas por circunstâncias, como a que dita que a única África que conhece seja a do Egipto e esse decerto influenciado pelas leituras dos egiptólogos, em alemão, francês, inglês.
E se Eça leu os indícios deixados cripticamente em Flaubert, Zola, que sub-repticiamente retratam as suas heroínas como herdeiras de um longínquo e insuspeito padrão genético, que, vindo de África, as tornaria seres apaixonados e apaixonantes até à desmesura que, subvertendo todas as regras sociais e morais, são punidas com a pena máxima?
E então, Eça, lendo, teria decidido não enveredar por caminho tão perigoso? Senda que o levaria à arqueologia profunda, a que revelaria o padrão genético de uma população europeia, mas com uma costela próxima em África? Agustina, muito depois, com a Ema, pegou na deixa para adensar o mistério desta sua mulher de papel.
Eça preferindo manter a superfície, todavia figura em segundo-plano o negro para o contrastar com a aparição que é Maria na sua resplandecente alvura divinal. Eça que retrata em notas sociológicas, longe pois da ficção, meninas alemãs, de coragem e ânimo viril enfrentando de fuzil em riste homens e bichos feras de África. Elas, tão contrastantes com as portuguesas vistas por um misógino ou lusófobo, talvez culpando a mãe mulher e portuguesa. Mas contra esta análise sempre se pode contrapor que a crítica literária não pode ver na criatura escrita uma projecção dos fantasmas do criador, vinda da Póvoa onde abandonado pela mãe, e qual Rómulo, cria-o uma Leal aia e ama-de-leite, de quem no entanto se terá de esquecer, mas de quem lançará para a posteridade o seu retrato na Aia que salva o seu príncipe Eça, ela dando o seu sangue, vida e futuro. O príncipe tem que esquecer para ocupar o seu lugar na sociedade. Esquecer é ultrapassar o estádio mítico, o estádio romântico, refugiar-se da devastação dessas eras de sombra na claridade da razão que traz o pensamento filosófico, e indo mais além avançar até à máxima fronteira, a da ironia que o vai pôr para sempre resguardado do medo, acima do vulgo timorato.
Este Eça teria tido coragem de deter o olhar sobre a sua África, a temível, e decidir que vale a pena perder tempo para a conhecer. Sem medo.

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