segunda-feira, 22 de abril de 2019

Bater com a mão na mesa -- Da jogatina à indignação cívica

Os bravenses descontentes com os transportes marítimos que (não) servem à ilha reivindicam os seus direitos a esse serviço. Como se expressa a força dessa reivindicação, uma constante na ilha mais isolada mas que se reacende em momentos de maior crise, emocional neste caso em que uma mulher de 27 anos grávida morreu por falhas (também) de transporte?
Os bravenses decerto expressaram a força da sua indignação com um “bate mon na me[z]a”, traduzível em “bater com a mão à mesa”, “bang our fist on the table”, “frapper la main sur la table” nas línguas escritas em uso em Cabo Verde.
Enquanto na principal língua da escola, classificada grosso modo como ‘português língua segunda’, existe o “bater com a mão na mesa”, na língua primeira (‘cabo-verdiano’, com várias designações, sendo a mais comum o familiar ‘crioulo’) é o “bate mon na/riba me[z]a”.
A expressão é constituída pelo verbo seguido do substantivo, sem qualquer elemento de ligação (que é a preposição indicativa do caso instrumental, em português ‘com’) entre o verbo e o objeto, na língua primeira e nas duas principais línguas estrangeiras do sistema educativo (e que até há pouco eram com ponderação as únicas assim classificadas).
O objeto precedido do verbo, note-se, é o substantivo ‘mão’/mon – que não usa o determinante artigo definido (no que é seguido pelo inglês, o follower, do título, ao contrário das duas línguas neolatinas acima).
Ressalve-se contudo que a riqueza expressiva — presente também nas línguas de Cabo Verde, na primeira e segunda mais presentes, nas estrangeiras com presença variável — pode selecionar um possessivo "bo/bu" semelhante ao inglês "your" acima traduzido.
A pergunta seguinte será então sobre outros registos de língua. Saber se, além do uso idiomático – uma esfera da língua muito viva, de que temos consciência mas que ainda falta muito para ser trabalhada de modo adequado —, haverá algum contexto em que ’bater’ forme uma locução com ’mão’.
Bater a mão. Tolera-se se for no peito a dizer/fazer o "mea culpa". Disse alguém ”O treinador hoje pôs-nos a bater a mão”, mas esse uso tem de ser analisado, para saber se decorre da economia inerente à oralidade ou se, devido a uma fraca reflexão sobre o funcionamento da língua, ocorre por uma incompreendida criatividade dum modismo efémero.
Sinónimo de ‘Bater com a mão no peito’, este ‘Bater a mão no peito’ (uma forma de compromisso transcendental) generalizou-se como idiomatismo para expressar seja a verdade dum facto (como uma espécie de juramento) seja o reconhecimento duma dada verdade.
‘Bater com a porta’ entra muito no discurso de imprensa, sobretudo nos últimos decénios. Dito ou escrito, é o ministro que sai do conselho de ministros em dissenso com o chefe do governo, é o membro que sai do CA por dissenso com o PCA. Mais um paradigma lusófono encontrável no episódio protagonizado pelo então PM Mário Soares, na primeira metade da década de 1980, a sentir-se livre como um passarinho ao “bater com a porta”, sob a presidência de Eanes.
Bater com a porta na cara de, a expressar idiomaticamente o contrário da ‘morabeza’, da hospitalidade, que a pessoa foi “corrida”, não é/ deixou de ser bem-vinda, significa propriamente o fechar a porta abrupta e/ou violentamente.
A extensão semântica a contextos político-diplomáticos presente nas referências à Europa que na definição das fronteiras ‘slams the door in the face of Turkey’. A expressão perifrástica ’fechar a porta abrupta e/ou violentamente’ condensada em “bater com a porta na cara da Turquia”, é traduzida em inglês por um verbo próprio, elaborado recentemente (segundo o Webster há menos de dois séculos).
Muito produtivo – e não só por boas razões
Um cidadão foguense diz da sua indignação, expressando que se pudesse não ia “bater à porta de” uma dada instituição.
Para a autossuficiência, o “bater à porta de” é uma das piores humilhações. Só o pobre ia ‘bater à porta de’. Mesmo se o cristianismo prega essa necessidade de chegar ao outro, fica implícito que a lição para ser aprendida exige o libertar-se do orgulho. Encadeada na lição aprendida em outro passo, no trecho que ensina a dar a outra face.
Muito produtivo, o verbo bater e os seus sinónimos: Bater por espancar e viceversa. Bater o coração. Bater uma/a saudade (no Brasil).
Muito produtivo, com muito uso em contextos diversos mas com predomínio do mais familiar. Um deles, o das tarefas domésticas, em que há muito uso de “bater”. Lave-se a roupa à mão ou à máquina, há quem continue a usar o verbo “bater”. Retour ligne automatique

“Bate o pó” (batia-se?, com o espanador sobretudo os estofados) ao lado de “Sacode o pó” ” (sacudia-se?, a roupa sobretudo de mesa, de cama, duma varanda para a rua).
A retomar o “bater por espancar”, veja-se os usos de “(não)bater em”. Não batas no carro/na porta, bate em quem te ofendeu/no adversário/no cônjuge/na filha. Retour ligne automatique

O ídolo de adolescentes em tournée no Brasil por estes dias, pela enésima vez, mesmo se da primeira, em outubro de 2011, ficou na memória carioca um episódio de vandalismo pelo então adolescente que acabou por levar à sua expulsão do hotel. Retour ligne automatique

Como um dos seus followers me deu a ler, a notícia então num prestigiado diário corria assim: "…Justin Bieber, a uma da manhã, está batendo nas portas e é expulso do Copacabana Palace".Retour ligne automatique
A dúvida é se o que ele fez foi ‘bater na porta’ ou ‘bater à porta’? A narração jornalística, tal como expressa nesse jornal e outros principais meios de comunicação do Brasil, não ajuda a entender.
E …?
Tem consequências a imperfeita aquisição duma língua (seja ela a primeira ou não) – como escrevia no século passado o dramaturgo Bernard Shaw sobre o inglês.
Tem, na verdade, consequências a indiferença (por vezes calculada por vezes adveniente do desconhecimento) ante a idiossincrasia entre as línguas em contacto.
Foto legendada: A longa vida do verbo que perpassa vários universos desde a geologia — na interpretação popular, a branda água que erode a dura pedra — está presente até no termo batota que vem do italiano (batosta) quando o jogador (batoteiro, que vive dos followers) dava um golpe na mesa a clamar vitória.
11 de março de 2019

(A continuar)